Um dos principais produtos da indústria cultural brasileira é, certamente, a telenovela. Surgida na década de 50 o gênero floresceu no Brasil e se tornou, hoje, mais que uma febre. Assistir a novela é um ritual enraizado no cotidiano de uma parcela importante dos brasileiros e brasileiras. Mas as estórias contadas nas telenovelas não são neutras, quer dizer, a narrativa transmite também valores e difunde perspectivas sobre a sociedade, política e cultura brasileiras. Então a questão que se põe é, qual será a real influência que as novelas exercem sobre a sociedade? A novela seria capaz de moldar o indivíduo, reafirmar preconceitos ou valores, incutir perspectivas políticas de certos grupos sociais?
Separei três leituras para quem se interessa pelo tema. O trabalho de Ondina Leal, “Leitura Social da Novela das Oito” retrata a recepção da novela entre a população brasileira, e é resenhado no texto abaixo. Uma reflexão teórica forte, e bastante central no debate brasileiro, sobretudo, sobre a indústria cultural faz Renato Ortiz, em especial os livros Moderna Tradição Brasileira (2001) e Mundialização e Cultura (1994).
Para uma reflexão mais pontual, o artigo sobre a minissérie Os Maias – Literatura na Televisão oferece uma reflexão sobre os bastidores da indústria cultural a partir de uma observação sobre a veiculação, promoção e recepção desta produção da Rede Globo.
O site Teledramaturgia traz bastante informação sobre o gênero e sua história no Brasil, e pode ser uma fonte para a pesquisa.
Bons estudos!
A Leitura Social da Novela das Oito de Ondina Fachel Leal. Petrópolis, Ed. Vozes, 1986
por José Mario Ortiz Ramos
A telenovela, esta produção ficcional seriada que sustenta e inclusive projeta internacionalmente a maior rede de televisão do pais, foi até o momento praticamente ignorada pelas ciências sociais. Os trabalhos sobre o tema são restritos, e em sua maioria realizados no âmbito dos cursos de comunicações. Faltam estudos históricos, econômicos e mesmo análises mais aprofundadas de conteúdos e linguagem. Neste deserto o livro A Leitura Social da Novela das Oito, de Ondina F. Leal, tem o importante papel de preencher em parte a lacuna, e pode ser inspirador de novos estudos que permitam alargar a compreensão desta produção cultural.
A opção da autora é clara: abordar o universo da telenovela pelo “pólo da recepção da mensagem”, procurando clarificar o processo de absorção dessa massa de imagens e sons que cotidianamente magnetiza os telespectadores. A autora vai acionar as contribuições da antropologia ─ da pesquisa de campo às reflexões de Mareei Mauss ─ articulando-as com uma crítica da cultura ancorada principalmente em Pierre Bourdieu, mas onde se nota também os ecos de Gramsci. O trabalho insere-se portanto mais no campo das interrogações sobre as práticas e significados da cultura popular, que no interior da vertente que analisa a indústria cultural tendo como referência os frankfurtianos.
A partir desta delimitação mais ampla a pesquisa foi direcionada para dois grupos de receptores, escolhidos por sua posição de classe (os grupos “popular” e “dominante”), já que a autora acredita que este recorte possibilita o acesso a um “locus privilegiado de significação”. As técnicas de pesquisa foram eminentemente qualitativas, com entrevistas abertas e “observação participante”, tendo sido aplicadas na recepção da novela “Sol de Verão” (1982/83) da Rede Globo, escrita inicialmente por Manoel Carlos e depois da morte do ator Jardel Filho por Lauro Cezar Muniz. Ondina Leal ainda enriquece a pesquisa e o trabalho com uma série de fotografias das casas dos entrevistados, concretizando uma “etnografia dos objetos” que revela as preferências estéticas dos receptores da novela. Aqui é nítida a influência de P. Bourdieu e sua análise do gosto onde os agentes se posicionam conforme o “capital cultural” e acionam “estratégias de legitimação”.
Vemos então a televisão compondo de forma diferenciada a decoração das residências.
Inicialmente temos uma descrição detalhada dos universos popular e dominante, e num segundo momento surgem as “leituras” da novela pelos grupos em oposição.
O aparelho de TV e o hábito de assistir novelas aparecem como parte integrante de uma vivência de grupo para o pólo popular, permitindo o acesso a “saberes legítimos”: “A televisão é o objeto que veicula uma fala moderna e sábia, é a racionalidade dentro do universo doméstico, e a ordem racional, contraditoriamente, é sagrada como mística. (…) O aparelho de TV é ostentado como bonito porque ele é modernidade, e ostenta-se com ele o poder aquisitivo da posse a prestações” (p. 38-39). No outro extremo, o da “alta classe média intelectualizada”, a novela sofre uma perda de legitimação e vai encarada como “alienante”, ou mera “diversão popular”. E também o aparelho vai perder seu caráter mágico cegando a ser banido para as “salas de TV”.
Após ter captado como televisão e telenovela se inserem nos dois domínios, a autora vai esmiuçar o processo de recepção. Como referência isola alguns elementos temáticos da narrativa da novela, e analisa a partir deles o posicionamento dos núcleos familiares. Vão surgindo assim as questões centrais do trabalho, tanto aquelas mais amplas relacionadas com o processo de recepção de um produto cultural, como as visões diferenciadas de aspectos e personagens da novela. A questão central, que atravessa este núcleo do livro, é sem dúvida a tensão, e às vezes sobreposição, entre os planos da ficção e do real. Para a autora o pólo popular mantém um distanciamento menor do universo ficcional, fazendo uma ponte entre o seu cotidiano e o imaginário da ficção seriada. Já os dominantes mantêm-se mais afastados, marcando sempre a irrealidade do ficcional. O texto aprofunda aqui uma tendência já demarcada anteriormente, quando tocou no ritualismo e atmosfera mágica que cerca a recepção nas famílias populares. No entanto, estamos agora num domínio de apreensão mais difícil através de entrevistas e observação, pois trata-se de captar o “encantamento da identificação” ou o “apelo identitário” como coloca a autora.
Enfim, penetrar no território das projeções/identificações criado pela relação indústria cultural-público como já mostrava Edgar Morin em L’Esprit du Temps, obra não citada mas próxima da análise de Ondino Leal. È este plano parece ser difícil também de captar através do corte de classe.
Será que o universo ficcional atinge e molda mais o grupo popular que o. dominante? Ficam dúvidas em relação à afirmação de que “o final” das novelas, que mobiliza sempre atenções nacionais, “não é fundamental” para o setor de “classe alta”: “A novela (para este grupo) vale por seus diálogos, quando de bom nível, sua atualidade, mostrando as modas de Ipanema, sua plasticidade e técnica, independentes do final (p. 69).
Não estaríamos aqui diante de um domínio enigmático, requerendo um instrumental de análise que ultrapassa a antropologia? São questionamentos que o trabalho sugere, e que inclusive o remete para discussões mais complexas, e ainda pouco desenvolvidas, no campo da recepção de criações ficcionais.
Mas em diversos outros momentos o trânsito real-ficção é bem explorado, surgindo claramente as diferenças culturais entre os grupos. O posicionamento diante da sexualidade e da posição das mulheres, uma característica de “Sol de Verão” é bem captado, as mulheres populares oscilando entre a crítica preconceituosa e a adesão às atitudes de Raquel. (Irene Ravache), as do outro pólo se identificando com a personagem mas marcando seu caráter fictício. São também interessantes. as reações diante dos personagens Noêmia e Zito, um casal de zeladores com inúmeros problemas, e que são apontados pelos dominantes como personagens “realistas” e praticamente não são notados pelo pólo popular:
“Nega-se a identificação explicita porque é penosa, e é negando que se reforça o efetivo e inconsciente mecanismo da identificação” (p. 74).
O grupo popular estabelece assim sempre relações mais íntimas com a telenovela, dominando a circulação de atores e autores pelos diversos horários, participando do encantamento, do hau das novelas. E a autora vai recorrer à noção de mana de Marcel Mauss, para encerrar o trabalho com uma discussão sobre “cultura e ideologia”. O mana como “exercício de um poder que o ritual recompõe” atesta que a ordem simbólica está sempre atravessada por relações de autoridade, de poder. A eficácia da ordem simbólica estaria desta forma entranhada com a ideologia, carregando no seu interior tanto a tendência à reprodução da ordem social como os germes da transformação. A contraditoriedade do simbólico, a luta pela hegemonia no campo cultural são indicadas na conclusão.
Mas fica uma certa área obscura entre esta discussão reais no plano teórico e o cerne do trabalho que consiste na captação das nuanças das diversas leituras da novela.
O corte mais politizado do final não estabelece vínculos claros com a análise que mescla posicionamento de classe e reações diante da. ficção televisiva. Mas a combinação da teoria. antropológica com um enfoque mais politizado é instigante, sendo que o livro abre interessantes possibilidades neste sentido e que merecem um aprofundamento.
A Leitura Social da Novela das Oito contribui, portanto, com a análise da telenovela e televisão de forma inovadora, ampliando a análise da indústria cultural no país.
Se esta opção for articulada com as formas de estruturação das produções ficcionais televisivas, com o lado digamos estético-cultural das obras, e ampliar a sua interlocução com a questão da cultura popular, poderemos caminhar para um quadro mais elaborado da desprezada produção cultural da modernizada sociedade brasileira.